Sai de casa e vai a vida! Sete da manhã. O despertador toca inútil. Ele já está acordado. A água do café já ferve no fogão e o primeiro cigarro já está apagado no cinzeiro. Mais um dia, mais dúvidas, incertezas, preocupações. Mais de tudo o que ele tem vivido nos últimos anos. Ele está cansado, ainda que disposto para mais esse dia.
Enquanto despeja a água sobre o pó preto, pensa no que pode fazer para mudar a vida. Respira fundo e sente o cheiro do café forte. Escolhe a caneca que mais gosta e enche até a metade. Deixa o restante passando no bule de ágata, enquanto toma seu lugar no lado afundado do sofá, em frente à televisão, onde as notícias torpes e tristes se repetem todos os dias. Acende outro cigarro. Visita as redes sociais pelo celular, verifica mensagens e e-mails. Nada de novo.
Repete o café e o cigarro. Toma um banho lento, faz a barba e fecha os olhos para deixar a água cair no rosto e nos olhos. Um prazer infantil invade sua alma e lhe tira um sorriso. Desliga a água e se cobre com uma toalha das grandes.
Olha no relógio. São onze e onze, constata espantado ao ver que o tempo correu mais rápido do que imaginava. Precisa sair e comprar cigarros. Veste uma roupa qualquer, escova novamente os dentes para tirar o gosto do café. Pega as chaves e bate a porta.
Hora do almoço. Ele escolhe comer um sanduíche. Dois pães de forma, duas fatias de queijo, duas de tomate, orégano e dez minutos no forninho. O queijo derrete. O pão ganha cor. A fome aumenta. Um copo de água e, de repente, está de volta ao lugar marcado no sofá. A TV repete as mesmas notícias que ele teima em rever. Falta energia e vontade.
O pensamento voa para longe. Os olhos fecham lentamente. O sono leve e irresistível vem e ele se entrega aos sonhos.
Um barulho parece lhe despertar. Percebe um despertador antigo, com direito a dois pequenos sinos e um martelinho nervoso no meio, que treme feito vara fazendo alarde. O relógio marca seis horas. A porta abre e seu pai assovia da porta o mesmo assovio de todos os dias. Ele sorri sem que o pai veja e finge reclamar do carinhoso som. Diz ao pai que já vai.
Toma um banho corrido, antes de tomar um copo de leite com Nescau, ou de experimentar o café do pai. Se percebe de uniforme escolar, mochila nas costas e cabelo penteado. Beija o pai e sai, atrasado, para pegar o ônibus de sempre. Os amigos já estão no ponto. O ônibus vira a esquina e todos separam as moedas e se apressam em subir os degraus altos.
Senta-se na janela e fica imaginando o que haveria por trás de cada janela, de cada cortina, de cada apartamento que surge à altura de seus olhos de menino. Na rua, meninas vestidas de normalistas lhe chamam a atenção. O ônibus perde tempo no caminho, ele confere o relógio digital que acabara de ganhar do pai e já se levanta para descer e correr pela rua antes que o portão do colégio se feche. Os amigos fazem o mesmo, em algazarra.
Entrega a caderneta, cumprimenta os funcionários do colégio e segue para a sala de aula. Chega junto com a professora que sempre parece estar de mau humor. Senta-se e faz força para prestar atenção. Adormece.
O barulho que imita uma cigarra o desperta. No sonho, era o sinal do recreio. De volta ao sofá percebe que é a campanhinha da porta. Levanta-se ainda sonado. Busca a porta e encontra o porteiro sorridente que lhe entrega alguns envelopes. Contas que ele não vai abrir agora.
Volta ao sofá. Sorri, lembrando do sonho. Olha para o celular e começa a mandar mensagens e a ligar para os amigos de infância. O sorriso cresce, as mensagens voltam com rapidez e cheias de carinho e logo ele se anima. Sai de casa e vai a vida!
Acervo pessoal.