Sou paulista, paulistana e nasci na Maternidade São Paulo.
De lá, fui levada num fusquinha branco para a Rua Capote Valente. Daquele primeiro andar eu me lembro da tartaruga que ficava no apartamento do térreo e da gelatina transparente com cravo e canela que Dona Laura, lá do outro lado do corredor, fazia para nós.
Reinei como filha única até os três anos e meio, o que explica muito da minha personalidade voluntariosa. Lá pelos dois anos, comecei a perceber que a vida acontecia mesmo ali na escolinha maternal do outro lado da rua. No primeiro dia de aula, uniforme amarelinho, segui a meninada e nem olhei para trás. Aquelas lágrimas da minha mãe só foram descobertas muitos anos depois, quando eu me derretia com sua divertida narrativa.
E assim continuei, sempre querendo estar onde a vida estivesse acontecendo, sempre com essa ofegante necessidade de não perder o agito do momento, fosse ele uma festa, um feriado na praia, férias sei lá onde, naquele ímpeto de seguir a “manada” que um dia finalmente passa, para alívio do ser em questão e dos familiares que o cercam.
Em um certo Setembro nasceu minha primeira irmã, com quem aprendi a dividir meu espaço e a atenção da família.
Com a chegada da minha segunda irmã, o apartamento já não comportaria a família. Fomos para a casa de portão branco, no Alto de Pinheiros, em que tínhamos um gramado no fundo e uma obra assinada pelo meu pai, arquiteto, especialmente para as três meninas: uma casinha de bonecas.
Eu amava aquele sobrado. Meu irmão entrou nesse capítulo da história, quarto filho com quatro pares de olhos femininos zelando por ele, o que já indicava que a vida de suas futuras namoradas não seria fácil. As coitadas precisariam de aprovação de quatro sogras.
Um dia meu pai avisou que nos mudaríamos para a casa de portão verde, a algumas quadras dali. Isso me causou crises de sonambulismo, porque não queria abandonar minha casa de bonecas e nem a Renata, minha primeira grande amiga, que morava no começo da rua.
Tudo foi resolvido: a casinha foi transportada para o novo endereço e Renata, que depois morou pelo mundo afora e hoje está em Brasília, continuou presente por cartas, telefonemas, visitas e agora é companhia diária neste mundo virtual.
Fomos felizes também na casa de portão verde, apesar das caronas que eu tinha que pegar com uma professora de Geografia do colégio que, para minha falta de sorte, era nossa vizinha. Minha mãe buscava meus irmãos e para mim, que estava no Ginásio e saía mais tarde, sobrava a Avenida Dr. Arnaldo congestionada aos acordes de O Guarani, já que a amarga quarentona não tinha assunto e não perdia a Voz do Brasil por nada nesse mundo. Até hoje sinto arrepios com aquele tan-tan-tarãrãn…
Dali fomos para a moderna casa projetada por meu pai, onde as três meninas não dividiriam mais o quarto. Lembro que um dia ele colocou a planta sobre a mesa e disse que cada filho poderia escolher o seu espaço. Com minha empáfia de primogênita, fui logo a primeira a tacar o dedo no papel vegetal para marcar meu território. Bem feito. Na ansiedade pela prioridade na escolha não reparei que aquele quarto tinha o menor closet, o que me causou alguns tormentos e um certo arrependimento por bastante tempo.
Continuávamos em Alto de Pinheiros, e minha vida se dividia entre aquele bairro e o quadrilátero entre Alameda Jaú, Peixoto Gomide, Alameda Itu e Casa Branca, nos meus treze anos de Dante.
Mais tarde passei a subir mais a Casa Branca e descer ao lado do MASP, para chegar à GV.
Lembro que quando comecei a estudar lá, estranhei que fosse um prédio com elevadores, parecendo escritório. Então, a graça era escapar de alguma aula chata e correr para o Pão de Queijo da Haddock Lobo, com minha amiga Bia, só para “ver a cor do dia”.
O meu primeiro emprego foi no Citibank da Alameda Santos, mantendo praticamente o mesmo trajeto de anos. Depois minha carreira me levou para outros lugares da cidade, mas minha relação com esses dois bairros sempre continuou fiel e imbatível.
Hoje vivo do outro lado do Rio Pinheiros e frequento outros quadriláteros, e continuo amando cada pedaço, cada buraco e cada congestionamento desta minha cidade.
Coisa de paulistana, fazer o quê?
Patricia Chaccur, pode ser encontrada no Real Parque sempre com seu belo e amigável sorriso no rosto. Já seus impecáveis textos estão disponíveis em sua página do Facebook http://Patricia Chaccur
ACERVO PESSOAL
Eu tive a minha primeira fratura na Rua Capote Valente. Era a casa da minha bisavó.
Uma casa com arquitetura inglesa, e um terreno imenso, e o quintal dava para a casa do meu Tio Gustavo.
Eu engatinhava, já era uma tentativa de fuga dos papos chatos de adultos, e minha mãe para que eu não caísse de cabeça, pegou-me pelo braço esquerdo e clac!
Foi a primeira de muitas fraturas.
Eu adorava ir na casa da minha bisavó, logicamente para fugir para a casa do Tio Gustavo e desenhar a tarde inteira!
No percurso, tinha um canto com tartarugas e lá naquela cabecinha minha tinha um pensamento :
– São dinossauros!!!!
Então eu enterrava as tartarugas.
Inexplicavelmente, surgiam mais tartarugas!!!!
Lá, na casa da Nathalia, tinha um busto de um primo e dava arrepios…era o primo Antoninho da Rocha Marmo; o Santinho de São Paulo, sobrinho da minha bisavó.
Vivi coisas tão boas nas duas casas, que hoje, ao passar lá, e ver um imenso prédio, minhas memórias são vivas, a casa não.
Linda história!
Beijos
Lu Guerra