Eu já passei dos quarenta e poucos.
Se você me perguntar o número exato, vou responder. Tenho essa estranha mania de dizer a verdade.
Vamos combinar uma coisa? Melhor você ficar imaginando, enquanto eu imagino o que você imaginou. E fica tudo certo.
Idade complicada, essa. Até agora, nada mudou. Não me sinto diferente de dez anos atrás. Mesma disposição, mesmos gostos, mesmas implicâncias. Menos paciência, verdade. Mais perspicácia. Menos hipocrisia. Mais “só faço o que eu quero, só falo com quem eu quero”. Agora, tem uma coisa que assusta – o momento da passagem.
Porque em algum pôr do sol, noite de lua cheia ou conjunção astral eu deixarei de ser considerada uma mulher jovem. E essa mudança de categoria acontece assim, descompassada, porque o mundo nos vê transformados muito antes do que nós mesmos.
Um dia desses eu me vi ali, na frente do espelho. Naquela cena bem clichê de protagonista madura em novela das 9. Eu dava uma seguradinha nas laterais do rosto. Sim, nas têmporas. E depois uma puxadinha. Fiquei com 34 anos. Sério, uma simples esticadinha de 4 milímetros equivalem a dez anos a menos. Está certo, mais de dez. Já confessei no começo da nossa conversa, eu sei. Falei, está falado. Não vou desprezar a sua agilidade na matemática.
Admito que tenho uma relação estranha com esse misterioso momento da passagem. Criei uma competição, eu contra ele. Faço testes diários, cada vez que chego a algum lugar.
Moça, o papelzinho! Acho que eu esqueço de pegar o papel de propósito, só para ouvir o manobrista me chamar.
Quer ajuda até o carro, moça? Ah, esses garotos do supermercado são umas graças. Gorjeta caprichada.
Não tem pão de queijo, moça, vai levar uns dez minutinhos. Eu espero, claro que espero. Quem tem pressa em São Paulo?
Moça, fui checar no estoque, não tem mesmo. Não tem problema, vim aqui só para isso, vocês disseram que ia chegar, mas volto outro dia! Lógico!
Bom dia, senhora. Carteirinha do convênio e documento, por favor. Sim, claro. Mas não precisa me chamar de senhora.
Entendi, senhora. A senhora pode assinar aqui, por favor?
Sim, mas não precisa…
Agora a senhora pode aguardar na próxima sala, eles vão chamar pela senha. Posso fazer uma pergunta?
Alguma dúvida, senhora?
Por que você está me chamando de senhora?
É por respeito, senhora.
Mas eu falei que não precisa.
É o costume, senhora.
Eu tenho cara de senhora?
Não, senhora.
Mas por quê esse costume, então?
É o treinamento, senhora.
Que alívio. Demorou, mas ela disse a palavra mágica. Treinamento. Escapei, mais uma vez. Duzentos e cinquenta e três a zero. Para mim.
E assim eu peguei minha senha e fui, dando cambalhotas de tão contente, aguardar para fazer uns 32 exames no laboratório. Delicia de dia.
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Obrigado pelo comentário, Rosana. A Patrícia realmente tem um texto delicioso. Em breve teremos mais uma nova crônica dela.
Olá, Dulceneia. A Patrícia é nossa cronista regular. Em setembro teremos uma nova crônica. Fique atenta por aqui e pelas mídias sociais.