Tetos de hotéis são todos iguais. Quer dizer, acho que sejam. Eu nunca reparei muito, para falar a verdade. Eu poderia estar em Havana, no Cairo ou em Ljubljana, mas é em São Paulo: cidade que, depois de anos, é minha. Raios de um sol esforçado – desses que só essa cidade tem – já tinham dado um jeito de se instalar no quarto, e tudo que eu queria era arrumar algo menos clichê (do que ir embora) para fazer, enquanto The Clash tocava Should I Stay Or Should I Go na minha cabeça, e a moça dormia de bruços do meu lado, me prendendo suavemente com sua – ainda quente – coxa esquerda.
Sem pressa, estacionei os olhos no branco do teto. Ou será que era gelo? Nunca achei que gelo fosse cor. Dane-se. Numa hora dessas (não da manhã, mas da vida) uma ida ao banheiro poderia me fazer parecer com o Leão da Montanha, querendo dar aquela clássica saída estratégica pela direita. E sinceramente? Não tinha a menor ideia se queria ir embora ainda. Fosse eu James Bond, teria ao menos um smoking pra vestir e uma flor pra deixar junto com um bilhete breve. Sem celular ou beijo de despedida. Mas a vida não é filme, e aqui, na vida real, a moça suspira fundo, e dá uma ajeitadinha no ombro.
Na ponta da cama, vejo escapando entre os lençóis, o pé que foi a primeira parte da sua anatomia que vi nua. Mal tínhamos entrado no taxi, saindo daquele palestra insossa, e os pés da moça já estavam descalços. Os saltos soltos na bolsa que carregaria o mundo. O esmalte claro das unhas. As coxas, pouco acostumadas ao sol, alegrando minha noite paulistana apontando discretamente na minha direção.
Até fiz que ia hesitar quando ela me chamou pra um drink no restaurante do hotel. Por sorte, desisti de brincar de me fazer de difícil. Sorte que também não conheci o tal bar do hotel. E sim o quarto. O elevador. O andar onde estava hospedada, onde ela andou pra trás nas pontas dos pés enquanto eu a beijava sem precisar ter dito toneladas de besteiras irrelevantes. Nossos olhos já tinham conversado e selado o acordo. Os corpos só obedeceram.
Uma obediência tão grande e tão acertada, que dava choque. Química tem dessas coisas. Nem lembro de ter tirado a roupa dela. Só lembro do peito procurando minha boca e o arco que ela fez com as costas para trás enquanto se segurava com as pernas travadas na minha cintura. As palavras ficaram trancadas para fora com o resto do mundo. Dentro do quarto, só nós e meia dúzia de interjeições. Todo o resto era dito com os olhos e gestos. Era como se já tivéssemos feito aqui mil vezes. Agora mil e uma. E continuava fantástico.
Eu só não sabia o que fazer depois, quando o dia vinha subindo as paredes. Uma daquelas horas na vida em que qualquer gesto pode definir o resto da história. Ficar ou ir? Fazer um carinho ou se levantar? A visão próxima daqueles lábios bem desenhados, afundados no travesseiro branco, dificultava qualquer decisão puramente racional, mas The Clash só aumentava de volume na minha cabeça. Should I stay or should I go. A noite tinha sido incrível e tal. Mas o dia seguinte às vezes guarda surpresas.
Se eu levantar agora…será que consigo que isso vire uma daquelas histórias perfeitas,, sem que o tempo estrague qualquer ilusão de sincronicidade e perfeição? E se eu rabiscar no bloquinho de papel do hotel “Maybe in another life, when we are both cats” será que me eternizo como o homem perfeito que ela não dominou e fugiu?
Não sei. Vê-la se mexer, mesmo entre lençois, me faz querer acordá-la. Um beijo de bom dia ignorando o dente ainda não escovado. Isso sim é intimidade. Depois uns beijos na sua nuca, colo e peito até ela se render e começar tudo de novo. Aí eu fico. Pra ganhar o dia antes de voltar com a roupa de ontem pro trabalho, enquanto ela vai visitar uma tia doente.
Aí eu fiquei. Pra beijar um umbigo lindo. Pra olhar pra minha barba por fazer no espelho de um hotel que não era meu. E pra deixar a moça na porta do Hospital das Clínicas. Gesto digno de um James Bond. Se não dele, alguém que vai voltar numa próxima vida. Ou aventura.
Zé Mangini. Foto do corredor do Hotel Standard em NYC.
O André Debevc é amigo e hoje mora em São Paulo. Nasceu carioca, filho de esloveno com mineira, torcedor do Fluminense, redator, e corredor. Começou rabiscando poesias pras meninas no colégio. Depois descobriu que queria e podia viver disso: escrever. Infelizmente não de poesia. Morava em NY no 11 de setembro. Não estava lá por causa de uma paixão. Sempre viajando na esgrima das palavras. Gosta de gente. E de Histórias. Tem certeza, que a vida não vale nada, se você não tem uma boa História pra contar. Esse tipo de cara, amigo, inteligente e romântico que a gente gosta de ter por perto. Veremos ele sempre por aqui. Ele e suas incontáveis Histórias. Aliás para quem quiser conhecer outras Histórias do André, vá também até o blog dele: www.cronicasdeguardanapo.com.br