Minha mãe escrevia super bem. Aliás fazia muitas coisas bem, principalmente ter filhos. Teve nove. Mas com as letrinhas ela adorava brincar, escrevendo cartas, bilhetes, poesias, crônicas e o que mais passasse pela cabeça dela. Muitas vezes quem era pego desprevenido pelas suas histórias, poderia se confundir com a realidade, dado a quantidade de detalhes e minuciosas descrições.
Um ano depois de sua morte, recebi pelo correio uma carta dela, enviada por uma das minhas irmãs: a nona. Quem recebe uma carta dessas, sabe bem o tipo de conteúdo: um pedido, uma declaração contundente ou uma revelação. Dentro do envelope, um outro envelope de uma dessas congregações cristãs que ela tanto participava endereçado a ela mesma com um manuscrito de 05 páginas e o título Três meses e meio de amor. O começo era assim:
“O calor sufocante de uma tarde de verão já amainou. Uma brisa leve sopra do mar. A tarde cai serena e calma. Agora posso sair de casa e ir até a praia. São mais ou menos 300 metros. Vou andando por uma trilha entre os arbustos. Com um passo maior transponho um fio de água cristalina. Framboesas vermelhas crescem da terra úmida. Pego as que estão maduras e saboreio o gostinho ácido. Mais adiante os eucaliptos perfumam o cair da tarde. Chego até a praia e me sento embaixo de uma amendoeira. Fico brincando com os gravetos e as conchinhas quebradas que a maré alta trouxe, a areia escorrendo entre meus dedos como o tempo escorre em uma ampulheta. Quase no horizonte uma onda se forma e vou seguindo com o olhar a sua ondulação até o instante que arrebenta e quebra mansamente na beira da praia, beija a areia quase aos meus pés e depois volta para o oceano. E sigo o ir e vir das ondas do mar. O mar vai mudando de cor, do esmeralda sob o luz do sol ardente, do azul que reflete o céu até ficar cinzento como os olhos dele que mudam de cor conforme a luz. Meu pensamento vai além da praia, atravessa o horizonte e chega até o navio que leva Kostas para a África. Como quisera ser uma gaivota e voar até ele… Ai de mim! Não tenho asas. O pensamento volta no tempo.
…
Já era quase noite, a primeira estrela brilhava no céu lilás e o mar estava escuro, Levantei-me da areia e voltei para casa. O barulho das ondas quebrando na praia cada vez mais longe, mais fraco. E agora o silêncio, o coração pesado de tanta saudade. Mas eu não estava mais só, o filho dele estava comigo…”
Sempre estranhei a minha mãe falar grego fluentemente, mas como ela falava outras tantas línguas, passou batido. Nesta carta ela explica que o Kostas era um grego oriundo de uma cidade ao nordeste da Grécia chamada Kozani, na região da Macedônia e que estava por estas bandas para tentar a vida depois de ter fugido de uma perseguição em sua cidade natal. Cita nome das irmãs do Kostas, fala um pouco da vida dele lá em Kozani, pincela um pouco de tudo, mas principalmente do romance durante estes três meses e meio.
Nunca fui a Grécia, mas pretendo ir. E quando for, vou conhecer Kozani. Preferia que fosse uma das ilhas, mas as montanhas também devem ter lá seus segredos.
Meu pai, de quem eu levo o mesmo nome, nunca soube desta História. Eu nunca contei. Por lealdade. Por respeito. Por amor.
Esta é uma das minhas muitas Histórias. Todo mundo tem uma História. Qual é a sua?
Zé Mangini, criador e fundador do 5511SP. Pode ser encontrado em sua casa a qualquer momento.
por ZÉ MANGINI