Entrevista realizada em 11/08/16, na Avenida Paulista, Bela Vista.
Um dia antes de começar a minha químio eu montei a página no Facebook. No dia seguinte, o dia minha primeira químio, eu já fiz um filme de como era passar por aquilo, fiz selfie entrando no Hospital, depoimento, cheia de coragem. Aiiii, dá vontade de chorar!
Comecei a minha página Quimioterapia e Beleza porque os meus amigos não queriam mais falar comigo. Ninguém queria mais falar comigo. Porque eu estava com câncer. Daí eu percebi que não é porque eles eram pessoas do mal, mas porque ninguém sabia o que falar para mim. Todo mundo estava muito assustado. Aí eu pensei que ia ter de ajudar estes meus amigos, dar um jeito. Se eles não querem falar comigo, com a página no Facebook, contando o meu dia-a-dia, quem sabe eles relaxem.
Naquele dia, um dia antes da químio, eu não sabia o que era uma químio. Não sabia o que era uma infusão. Não sabia que era só uma bolsinha de remédios. Eu pensei que ia doer. Mas ninguém sabe como é a realidade de uma químio. Não é nada! É só uma sala com um monte de cadeiras, com um sofá, poltronas… Cada um fica na sua… Trocam umas idéias. Se você está incomodando muito, os enfermeiros te tiram e te isolam. Se você começa a falar alto, muitas besteiras, filmar, fazer bagunça, eles te isolam também. Eu incomodei bastante. Toda a químio eu incomodava. Tirava foto, queria ver, saber, filmava. Daí me isolavam logo. Eu ficava numa cama, levava visitas, falava, conversava, fazia festinhas e ficava doidona dos remédios.
Tudo começou com uma pesquisa no Google. Eu procurava com as palavras chaves Quimioterapia e Beleza. E nada. Só aparecia estética, tratamento oncológico e essas coisas. Não tinha nada mais direto, como colar os cílios postiços quando a gente não tem cílios. Como amarrar um lenço na cabeça careca. Eu queria saber essas coisas. Lenço, na pesquisa, só vinha como amarrar na bolsa, no pescoço, na blusa… Foi por vaidade, eu queria me reconhecer no espelho. Eu sabia que eu ia perder os cílios, a sobrancelha, o cabelo, que eu ia ficar cinza, que eu ia engordar, que ia acontecer um monte de coisas comigo. Mas eu poderia usar os artifícios de beleza no meu dia-a-dia. Um dia antes eu estava procurando amigos no Facebook para conversar e ninguém conversava comigo. Daí eu ficava vendo o botão, crie uma página, crie uma página, crie uma página… Ah, tá bom vai! Criei uma página. Quimioterapia e Beleza. Aí eu fui dormir. No outro dia comecei a alimentar a página. Era só uma página para os meus amigos conversarem comigo.
Meu câncer, foi de mama. Eu ainda estou em tratamento. Quando acabar eu vou ser uma paciente oncológica fora de tratamento. Mas sempre eu vou ser uma paciente oncológica. Mas isso é só um detalhe no tratamento. Eu fiz uma cirurgia, uma mastectomia. Tiraram os meus dois seios. Fiz trinta químios e vinte e oito rádios. Depois da mastectomia, passou um tempão. Tive de esperar ganhar dinheiro para eu fazer a segunda parte da reconstituição. E fiz agora, há três meses. Mas o processo todo foi bem mais fácil do que eu imaginava.
Depois, os meus amigos ficaram bem mais à vontade. Eu tentei também não mudar muito o meu estilo de vida. Eu gostava muito de sair com as minhas amigas às quintas, comer um sushizinho, um temaki, uma coisinha qualquer, eu tomava uma cervejinha. E eu não queria deixar de fazer aquilo. Mas as minhas amigas falavam que eu tinha que me resguardar. Aí eu dizia que se elas não quisessem a minha companhia eu ia ter de arrumar outras amigas. Ou vou sair com vocês ou vou sair com outras pessoas. Ou saio sozinha. Assim eu consegui quebrar o gelo com as amigas. Os primeiros encontros com as minhas amigas, foram em casa. Eu mostrava as minhas perucas, colocava as perucas nelas, fazíamos fotos, dava Champagne para elas… e eu tomando tudo sem álcool.
Meu filho, que na época tinha 20 anos, aceitou a doença, aceitou o tratamento e até me confortou. Mas quando me viu careca, não gostou. Ele não olhava para mim. Ele não tinha contacto visual. Daí eu quis quebrar o gelo também. Pedi para ele procurar na internet um kit de hena, porque eu queria que ele fizesse uma arte na minha careca. E ele que seria o artista. E com esse negócio de pintar a minha careca eu quebrei o gelo com ele também. Então, tentei deixar todo mundo muito à vontade comigo, minhas amigas, minha família, meus vizinhos, interagi com bastante gente porque eu precisava delas. Antes de tudo, foi para me ajudar que eu fiz tudo isso.
Na minha página pessoal eu tinha uns mil amigos. Eu trabalhava com moda, conhecia bastante gente. Para a página eu convidei todos eles, mas poucos aceitaram. Até um amigo meu me disse: Flávia eu vi que você me convidou para curtir uma página Quimioterapia e Beleza. Eu não tenho como curtir. Eu não curto quimioterapia, tá? As pessoas falavam, nossa, que coisa horrível! Troca de nome! Quem vai curtir isso? Eu respondia: Por que? Te chocou? Se te chocou, está tudo certo! É isso aí! Vamos em frente! Se você pensar, não tinha nada a ver Quimioterapia com Beleza. Não tinha. Agora tem! Eu ganhei muitos livros de câncer que até falavam de auto estima. Mas tinham as figurinhas de tumores, células cancerígenas, essas coisas.
Depois que você passa por um câncer, ninguém é mais a mesma pessoa. Durante estas minhas “férias” – já que a gente não precisa mais trabalhar -, eu pensava o que eu ia fazer. Um trabalho pessoal, fotográfico? Ou vou colocar a minha leitura em dia? Pensei uma monte de coisas que eu poderia vir a fazer. Eu já tinha uma preocupação com o auto conhecimento. Eu tinha tempo, então fui me auto conhecer. Quando a gente olha para trás a gente começa a achar que valeu a pena ter passado por tudo isso, porque se não fosse isso eu ia continuar me preocupando com as pequenas coisas. Se eu não tivesse passado por tudo isso, eu ainda não saberia quem é importante ou não é. É um tempo que a gente tem que, se for bem aproveitado, é incrível. Pena que tem que passar por um câncer para esse auto conhecimento. Minha família mudou bastante. Não só comigo, entre eles também. Antes do meu tratamento, no Sábado de manhã era almoçar com a avó. No Domingo era com o meu pai e a noite era com a madrasta. Era tudo dividido. Quando eu voltei das 8 horas de cirurgia, eu já vi meu pai no meio, minha mãe de um lado e minha madrasta de outro lado. Antes, meu pai não falava com a minha mãe. Depois mudou tudo e ficou todo mundo junto.
No começo, alimentar a página no Facebook, foi bem amador, depois eu comecei a escrever mais, a me expor mais. Quando eu comecei a escrever o livro, daí deslanchou. Eu escrevi o livro quando eu estava vivendo aquilo tudo. Estava no meio da químio. Eu tinha um monte de novas amigas (que eu fiz por meio da página) também passando por isso.
Teve um período em que eu fiquei bem mal. Eu fiquei uns dez dias depressiva, sem sair do quarto. Ficava fazendo orçamento do crematório, essas coisas. Eu dei meus sapatos de salto alto para as minhas amigas. As roupas. Tudo. Fiquei só com os pijamas. Depois peguei tudo de volta! Eu não tinha uma referência, para ver na internet como era, o que acontecia. Tinham as blogueiras para tudo, eu tinha trabalhado com elas, e não tinha nada para beleza durante tratamento de quimioterapia. Tinha um monte de oncologia, mas nada de beleza.
Durante o meu tratamento eu recebi muitos lenços de presente. Eu até pedia. Via no Facebook alguma amiga viajando e logo pedia para trazer lenços para mim. E as amigas traziam lenços e um monte de outras coisinhas. E fui acumulando os lenços. Um dia com a minha mãe, a gente lavou todos e estendemos no varal. Ficou lindo, colorido! E eu fiquei lá no meio do labirinto de lenços coloridos, fiquei só viajando… Um dia fui dar uma palestra em Brasília e uma moça veio falar comigo, querendo fazer alguma coisa maior. Daí eu sugeri fazer um banco de lenços, como os bancos de perucas que existem por aí. E já podíamos começar porque eu tinha meu estoque de lenços. Tinha uns duzentos lenços. E assim foi. Toda vez que eu ia em um Hospital, que eu fazia uma visitinha, eu dava um lenço. Se os lenços deram muita sorte para mim, também iriam dar muita sorte para as outras pessoas. Se alguém quer dar um lenço, quer fazer o bem. Ele está dando com uma intenção boa. Já sai energizado da casa da pessoa. E esses lenços vem para cá, daí a gente lava, embala, e recebemos por e-mail o cadastro com o pedido. E de acordo com o que a pessoa fala dela, a gente escolhe o lenço. A gente procura o lenço ideal para cada um. Depois vem a mensagem agradecendo e contando tudo.
A gente está fazendo um documentário curta metragem, que vai entrar o circuito ainda este ano, com direção do Daniel Tupinambá. Eu tenho muitas imagens daquela época. De amigos fotógrafos e do Daniel que faz imagens minhas desde o começinho. Eu tenho vídeo raspando o cabelo, vídeo da minha primeira químio.
Se a gente não se reconhecer no espelho, fica muito difícil. Eu acho que só o fato de me reconhecer no espelho e dizer : “Oi, Flávia!” já ajuda muito. Eu não tenho nenhuma foto minha de cara lavada durante a químio. Era muito assustador. Como eu ia me reconhecer no espelho daquele jeito? Eu não saía do quarto sem estar produzida. Eu não queria assustar a minha vó.
Eu quero servir de exemplo. Eu quero replicar isso pelo Mundo inteiro. Eu quero me expor para outros países, para em cada canto ter alguém que vai olhar e vai querer fazer igual. E assim a gente vai replicando a fórmula. Eu quero que outras meninas contem a sua História. Cada ano uma garota em destaque.
O Instituto existe para sair da informalidade. Antes eu era só uma pessoa que tinha uma página no Facebook e depois veio o livro e só depois veio o site. Eu gosto nas mídias sociais porque eu lanço uma pergunta e na hora vem um monte de respostas. As pessoas se expõem, contam. No site não é assim. Mas é lá que eles vão procurar a informação certa. No Facebook, hoje, são mais de 4 milhões por mês de acessos.
Eu nasci em Florianópolis, morei em San Diego, na Califórnia, porque eu queria ser piloto de avião. Fui e fiz meu curso de piloto lá. Voltei para Florianópolis e continuei a trabalhar com meu pai. Desde os 13 anos meu pai me colocou para trabalhar com ele. Morei no Rio também antes de começar a faculdade de administração. Tentei a vida no Rio. E bastante São Paulo. Muito São Paulo. Vim para cá por causa de um namorado que morava aqui. Hoje eu não consigo ficar longe de São Paulo. São Paulo me abriu muito a cabeça. Eu fui muito bem recebida aqui, pelos amigos, pela Cidade, pelo mercado de trabalho. Hoje São Paulo é a minha cidade. Quando eu cheguei em São Paulo, morei na Rua Tutóia, depois a gente montou um apartamento na Vila madalena. Dai eu fui para o Jardins e agora aqui na Paulista. Todos os lugares que eu morei foram especiais.
O som da cidade para mim é de ruído. Mas é um ruído bom, que se confunde com as ondas do mar. Quando eu morava na Tutóia, eu ouvia a 23 de Maio e eu achava que era o mar. Ficava sonhando com o mar, as ondas.
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Créditos:
Entrevista: Ana Barbieri e Zé Mangini
Edição: Zé Mangini
Imagens: Acervo pessoal e extraídas da página do Facebook