A garotinha era franzina, conversadeira, olhos muito grandes e curiosos. Tinha doze anos, muitos amigos e vivia em extrema pobreza numa espécie de edícula construída e alugada nos fundos da casa grande. Eram dois cômodos que abrigavam a ela, os pais, o irmão mais velho. A rua de muitas residências e que tinha seu fim no Monumento do Ipiranga era democrática: ricos, remediados e pobres conviviam e se davam bem, e não era difícil achar a garotinha brincando nos quintais das casas, compartilhando dos brinquedos que não eram seus. Naqueles tempos, era plausível uma criança nessa idade, ainda fantasiar com o Bom Velhinho. De modos que diante da proximidade do Natal, a menina, novamente esperançosa, pegou um saco de papel jornal e dentro dele largou o bilhete ano a ano repetido: boa filha e boa aluna e portanto merecedora de qualquer brinquedo para poder mostrar aos amigos. Todas as noites naquela semana, colocava o saquinho no parapeito da janela.
Acordava e ainda com olhos remelentos, abria a porta. E num dia daquela semana, já não estava mais o precioso pedido. Saiu para a rua, precisava contar. Bateu na casa ao lado, falou do acontecido. Ali moravam duas amiguinhas que também tinham uma novidade. Os pais iriam buscar uma criança em um dos orfanatos da rua Bom Pastor para passar a semana do Natal e Ano Novo ali com elas. A menina órfã, que se chamava Ana Maria, seria buscada no dia seguinte. E entraram na casa, já que as garotinhas queriam mostrar os presentes comprados para a hóspede: alguns vestidinhos, sapato, roupas de baixo, pijama, uma blusa de lã. Brinquedo era por conta do Papai Noel e tinham pedido que trouxesse um bebê da Estrela com chupeta na boca. Elas mesmas tinham pedido também para si o tal bebê, mais um carrinho de bonecas. E a garotinha disse que escrevera pedindo um brinquedo que pudesse compartilhar com seus amigos.
Ana Maria era tímida e difícil de convencer participar das brincadeiras. Naquela semana ela, as duas meninas anfitriãs e a garotinha sem recursos brincavam somente dentro de casa. Os pais das crianças não queriam arriscar e dessa maneira, brincando confinadas, as quatro criaram uma relação cujo desfecho marcou a vida pelo menos de uma delas.
Aos poucos a órfã passou a relatar a vida em orfanato. Não tinha nada de seu, nem roupas já que as internas usavam uniforme. Apanhavam, levavam castigo, ajudavam na limpeza, estudavam. Era proibido ficar em grupinhos, não dava para fazer amigas confidentes. Trocavam bilhetes entre si mas se fossem pegas pelas freiras….perdiam a próxima refeição, além dos variados castigos físicos.
Esses relatos foram ganhando força na reflexão das demais. As duas irmãs passaram a trabalhar com a idéia de que os pais adotassem Ana Maria; a garotinha, tema desse conto, chegou a conclusão que nada era mais importante do que ter pais, ter uma casa, amigos de rua e de brincadeiras. Para essa última portanto, o sentido de Natal mudou o foco e sua prioridade infantil também. Se deu conta que igualmente não tinha nada de seu, mas o que sobrava dos outros – roupas e calçados, principalmente; dependia da atenção e carinho dos amigos para ter acesso a tantos brinquedos e brincadeiras. No entanto, refletia, vivia num mundo onde as pessoas se importavam, se queriam bem e eram livres. Isso era um presente.
Amanheceu e o sol de vinte e cinco de dezembro levou a molecada toda para a rua. Hora de exibir o resultado das cartinhas.
A menina encontrou ao pé da cama, um palhacinho com guizos nos pés e mãos. Colorido, risonho e com cabelos encaracolados que pareciam naturais! Acordou os pais, o irmão, beijou todo mundo e correu para a rua, abraçada com o presente. Foi direta à casa ao lado e logo vieram as três amigas com seus bonecos bebês. Ana Maria pediu para segurar o palhacinho e, abraçada a ele, sorriu e fechou os olhos. O dia terminou com as quatro a maior parte do tempo brincando “de casinha”.
A semana de festas chegou ao fim já na manhã de 1º de janeiro. Do cômodo dos fundos a garotinha podia ouvir o choro e os lamentos que vinham da casa ao lado. A razão da balbúrdia logo veio à sua lembrança: Ana Maria seria devolvida à instituição de onde saíra para conviver com uma família e fazer amigos. Sentiu que iria chorar também e agarrada com o palhacinho saiu uma vez mais para a rua e bateu à porta dos vizinhos. Os gritos eram ouvidos com clareza cruel. Uma das irmãs abriu a porta. Chorava. Ana Maria veio ao seu encontro, rostinho lambuzado de lágrimas, agarrou-se a ela desesperadamente e hora pedia para ficar, ora pedia o palhacinho para si.
A garotinha fitou pela última vez o único presente trazido pelo Bom Velhinho em anos. Olhou diretamente para a órfã, disse-lhe para não chorar mais, que levasse o palhacinho para ser seu melhor amigo. Ana Maria foi gradativamente se acalmando e sentada na cadeira, palhacinho no colo, abaixou a cabeça e esperou ser conduzida.
Na porta da casa dos fundos, o pai da menina aguardava sentado o retorno da filha. Ela veio ao seu encontro e aninhou-se em seus braços. Não entendia como podia estar tão triste e tão satisfeita ao mesmo tempo. Contou sobre Ana Maria. Em confidência, o pai lhe contou sobre Papai Noel.
Berenice Arjona Diniz, manda seus textos através desta seção. Aprendeu o caminho e gostou de postar por aqui. Nós também gostamos muito de ter a Berenice por perto. Este texto até foge um pouco da nossa pegada por ser um conto, mas gostamos muito e por ser época de Natal consideramos apropriado. Mande o seu texto também !
Zé Mangini, Criador e Fundador do 5511SP