Seu Álvaro era um senhor aposentado que ficava sentado no final da rua, pegando Sol por toda manhã.
Sempre com suas calças cáqui, suspensórios e chapéu. Tinha olhos grandes, claros e esbugalhados e com olhar atento atrás dos óculos “fundo de garrafa”, com armação igualmente grossa.
Estava sempre sorrindo, empunhando sua bengala, ora observando pássaros, ora nos observando brincar na rua, com um pequeno sorriso de quem já não conta mais o tempo, já não se importa mais com o “tic-tac” que o relógio digital não faz.
Éramos crianças e ficávamos à sua volta para ouvir suas histórias. Todo dia havia uma nova, mas pedíamos para que ele repetisse as que gostávamos mais. Algumas eram repetidas muitas vezes, mas ouvíamos como se fosse a primeira vez, com a mesma curiosidade ingênua em saber o final já conhecido.
As histórias em sua maioria, eram de lobisomens e assombrações do interior, mas começaram a ficar mais assustadoras e interessantes quando as “aparições” começaram a acontecer em lugares que conhecíamos como o “Lobisomem da Squibb”, que era um imensa fábrica da “Bristol Myers Squibb Brasil S/A”, com seus pátios arborizados e escuros.
Na história, uivos estranhos eram ouvidos durante a madrugada afora em noites de Lua cheia e supostamente foi descoberto que se tratava de um dos seguranças noturnos que carregava tal maldição. Não houve relatos de nenhuma morte ou feridos em tal história, o que nos deixou bastante aliviados, já que sempre passávamos de ônibus em frente à empresa.
Certa vez, Seu Álvaro nos chamou e contou baixinho, olhando sobre os ombros para os lados, desconfiado, para que ninguém ouvisse o segredo que nos revelaria. Disse que havia conhecido um antigo benzedor na roça e que este senhor conhecia rezas que o faziam ficar imperceptível aos olhos humanos. E que teria revelado que se alguém conseguisse ficar por 10 minutos olhando diretamente para o Sol, em um dia e horário específicos, poderia transmutar para a forma de qualquer animal.
Ninguém se atreveu a tentar, não éramos tão idiotas assim. Mas adorávamos ouvir as histórias e acho que era um ótimo passatempo para o Seu Álvaro contar essas histórias.
Crescemos, e as visitas ao Seu Álvaro e suas histórias foram ficando cada vez mais escassas.
Nossos interesses já eram outros agora, já estávamos no 2º Grau. Um dia em particular, saí de casa e no caminho olhei para o fim da rua, onde ficava o banquinho de madeira fincado no chão de terra batida. Seu Álvaro ainda não havia saído da sua humilde casa naquele dia, ainda não havia atravessado a ponte feita de madeira velha de construção que transpunha o rio sujo, cheio de saídas de esgoto clandestinos.
Naquela época, eu ainda achava que podia deixar as coisas para depois. Poderia passar depois para ver o Seu Álvaro, poderia deixar para outra hora, poderia deixar para outro dia…
Nostalgia foi o que senti naquele momento, uma espécie de saudade de algo que nunca mais seria vivido. Naquele mesmo dia, ao voltar para casa, veio a notícia que seu Álvaro havia falecido.
Não foi meu primeiro contato com a morte. Assim como várias crianças da periferia de SP, já havíamos presenciado muitas mortes: Afogamentos na represa, esfaqueamentos, tiros da polícia, assaltos, suicídios, corpos que eram desovados no campinho… Mas acho que foi a primeira vez que realmente isso me afetou.
É incrível como algumas pessoas passam por nossa vida, fazem diferença, nos inspiram, nos incentivam, nos fazem ser curiosos e interessados… E se vão. Ou nós que as deixamos ir?
Talvez tenha sido a partir daí que inconscientemente me convenci a fazer do hoje, do agora, meu melhor. Faço planos também, mas não me prendo muito a eles. Tento viver intensamente o hoje, amo demais, sinto demais, vivo demais!
Espero que quando eu te encontrar, possa te contar uma história assustadoramente interessante que te faça sorrir, ou que te inspire e que definitivamente te incentive. E espero que você faça o mesmo por mim e por todos que cruzarem o seu caminho.
E se eu não te encontrar mais, espero que algum dia, em algum momento, eu já tenha feito isso alguma vez. Não tão bem como o Seu Álvaro fazia, eu sei…
Raul Souza