Depois de vários anos trabalhando em casa recebi um convite irrecusável de um cliente para dar expediente na agência dele. Detalhe: moro nos Jardins e eles ficam no Butantã. Ir de carro não era opção: detesto pegar trânsito, ficar empacada sem ter por onde sair, passar stress. Descobri que podia pegar um ônibus na 9 de Julho e descer na porta da agência. Na volta tenho várias opções: desço na Rebouças e venho passeando pela Oscar Freire, no Parque Trianon, quase esquina com a minha rua ou até na própria 9 de Julho, a duas quadras de casa. Detalhe: com pouca gente nos horários em que vou e volto. Aos poucos fui percebendo que havia um material humano muito rico nestas viagens de ida e volta. Em vez de ficar olhando somente para o celular como a maioria, olho pela janela, vejo a paisagem que sempre é diferente e ouço conversas, fragmentos de vida, que decidi compartilhar com pequenos textos, numa séria chamada “No Ônibus”.
Dia 07.05.18
Voltando para casa, escuto a conversa de duas mulheres no banco de trás. “A clínica era ótima. O nome do médico é doutor Formiga. Lá tem tudo. Ginecologista, cardiologista, astrologista, norologista… muito bom o astrologista.” E desceu antes que eu ouvisse mais para saber o que faz um astrologista…
Dia 15.05.18
Mulher ao celular: “ela gosta muito de hospital. Quando você ficar internada, ela vai ficar com você”…. Ouve a resposta e fala: “sei lá, você, qualquer pessoa”… passam alguns segundos, ” não vou mais falar disso, me dá muita raiva. Tenho vontade de ir até aí e quebrar teu pescoço!”. Pouco depois, continua “amanhã é a despedida de fulana. Você vai sim! Mas não vai comer e nem beber!”
Dia 16.05.18
Rapaz ao celular: “você liga para ela, elogia o cabelo, a bolsa, essas coisas. Daí quando ela estiver toda feliz, pergunta se na prova de hoje podemos levar os cadernos para consulta. Sabe como é, mulher é melhor para levar os outros na conversa…”
Dia 17.05.18
A melhor conversa hoje no ônibus foi a de um grupo de adolescentes surdos mudos, gesticulando animadamente e morrendo de rir.
Dia 16.06.18
Rapaz conversa no celular, pelo microfone, como se estivesse na sala de casa. “Não sei como ele não morreu naquele dia que roubaram nóis e o carro. Nóis tinha tomado uma caixa de energético. É… seis cada um. Ele tava muito louco. Depois fiquei derrubado treis dia. Nóis não devia ter fazido isso…”.
Dia 26.06.18
Voz masculina às minhas costas: “tudo bem. Amanhã vou estar atendendo na Pediatria do hospital. Não, não tem problema. Não vou deixar de atender um paciente por causa do jogo. Pode ir. No máximo vou por uma televisão por ali e a gente olha quando puder. O bebê, como está?” Pena que não pude cumprimentar o médico pela atitude.
Dia 28.06.18
De pé, na minha frente, a garota com uma saia plissada prateada e um blaser preto conversava baixinho. Sozinha. Olhei procurando um fone de ouvido. Não tinha. De vez em quando mexia a cabeça concordando ou discordando. De repente tirou o celular do bolso e digitou no Whatsapp. Guardou o aparelho e continuou naquela mesma conversa solitária. Sorriu algumas vezes. E desceu no ponto da 9 de Julho com a Av. Brasil.
Dia 03.07.18
Blusa rosa com mangas bufantes, longo cabelo grisalho preso num rabo de cavalo, a senhora sentada ao meu lado no caminho de volta acompanhava cantando alto as músicas em louvor a Deus, que ouvia nos fones de ouvido conectados ao celular. De vez em quando, batia palmas. Ou fazia com as mãos movimentos como se estivesse regendo os músicos…
Dia 16.07.18
No ponto do ônibus, homem de uns cinquenta e poucos anos fala para jovem que o acompanhava: “O que importa são nossas intenções, nosso comportamento, nossas crenças. Hoje em dia tem muita informação. E o que fazem com tanta informação para o bem das massas?”.
Dia 17.07.18
No Metrô, voltando de reunião com cliente na Zona Leste. Homem começa a falar alto: “Gente, eu tinha duas caixas de chocolate e quando passei na catraca, gente, o guarda tomou tudo, gente. Pegou minha mochila, eu reclamei, mas ele disse que era apreensão. Gente, vocês podiam me ajudar com qualquer coisa, qualquer dinheiro, para comprar outra caixa de chocolate”? Recolhe dinheiro de algumas pessoas. “Gente, falta completar 18 reais, gente. Vamos colaborar para eu não precisar pedir em outro vagão, gente. Senão vou ficar constrangido”.
Dia 18.07.18
Conversa ao celular: “ Não, Dedé, não precisa me agradecer nada. Tudo o que faço para sua mãe, Deus me dá em dobro. Isso. Mas, Dedé, quem continua muito feia é a Zeca. Muito feia! Por isso que ainda não casou. Até Vitória comentou…”
Também no Dia 18.07.18
Conversa ao celular: “Flávia, quando você vai querer bater a laje? Sexta ou sábado? Tem muita coisa pra fazer lá no fim de semana. A gente precisa fazer toda a encanação e cavar as paredes pra pôr os canos. Fala com a mulher pra ela te dar a segunda-feira e você começa na terça. Tem que ter um dia pra descansar”.
20.07.18
Sexta-feira, final da tarde. Rapaz fala: “Sabe aquela batida de maracujá com leite condensado e Yakult?” Garota responde: “Yakult?” Ele: “é, ficou top, top, top! Acho que vou fazer de novo quando chegar em casa!” Dois dias depois, para minha surpresa, a tal receita aparece na minha timeline….
24.07.18
Eu também apronto das minhas e acabo virando personagem…Saio de casa com a bolsa, o notebook numa sacola de pano para disfarçar e lembro que só tenho 10 reais na carteira. Chego ao ponto, ao mesmo tempo em que três ônibus param em fila. Vejo no segundo “Terminal C…” e nem me incomodo em verificar o resto do nome. Deduzo que é Terminal Campo Limpo e embarco. Quando ele atravessa a marginal, em vez de seguir em frente pela Av. dos Tajurás, dá a volta para ingressar na via expressa da Marginal Pinheiros em direção a Santo Amaro. Era Terminal Capelinha. Consigo descer no primeiro ponto e volto caminhando pela calçada da Marginal, segurando com força a bolsa e a sacola pesada com o notebook. Chego de volta à Avenida dos Tajurás e lembro que o ponto do ônibus é meio longe. O dinheiro não é suficiente para pegar um táxi até a agência, mas resolvo arriscar assim que vejo um deles. Antes de entrar, pergunto: “Moço, o senhor tem maquininha para cartão?”
26.07.18
Conversa no banco de trás. Duas mulheres. Uma comenta: “A Dé foi na agência e já começou a trabalhar na segunda-feira”. Resposta: “mas não é assim fácil não. A agência tem que atender as ingigências do patrão. Ela tem que falar se é empregada doméstica, copeira, arrumadeira, o que faz, que horas trabalha e tem que dar as referências autenticadas no cartório”. A primeira: “no cartório?”. Resposta: “É! Tem que resitrar a referência, senão eles não aceita”.
27.07.18
Sogra falando da ex-nora: “Imagina que ontem ela estava na casa da mãe dela às 10 da noite com esse frio! E saiu com a criança no carrinho, toda encolhidinha. Eu falei pro meu filho que se ela desse esse menino pra mim, ele ia viver como um príncipe. Eu ia comprar roupa, fazer comida, mandar pra escolinha. E não ia ter esse negócio de andador. Minhas crianças aprenderam tudo a andar com o pé no chão”.
31.07.18
Mulher fala baixinho ao celular, mas consigo ouvir: “a vida tem dessas coisas. Se a gente cria eles com sacrifício, eles vão à luta. Se crescem e a gente dá de tudo, acabam ficando como a Fabiana e o Eduardo”.
07.08.18
Conversa das mais rápidas ao celular. Voz feminina irritada no banco de trás: “Tô. Não. Ainda não deu tempo. Você sabe esperar?” Com um leve tom de ironia: Muito obrigada”.
Pessoa no fundo do ônibus ouvia música pelo celular sem fones de ouvido. O sem noção tinha um certo bom gosto: na trilha tinha Creedence Clearwater, Bonnie Tyler e outras preciosidades vintage…
08.08
“Você tem cachorro?” Resposta: “Tenho um Pitbull”. “Ele é novinho?” Resposta: “Tem dois anos e seis meses. Ele é de fevereiro, faz aniversário no dia 17 e eu faço no dia 18. Outro dia vi um filme no face de um cara que carrega o cachorro no colo o tempo todo. Toma banho, limpa a casa, sai, tudo com o cachorro… tem gente que fala que é errado. Por que? Tem mulher que tem filho e carrega no colo para tudo quanto é lado.”
10.08
No celular: “Ele é assim. Se acha o melhor. Tudo é ele, o filho, a mulher… Aquela farmacêutica que trabalha lá fez a caveira dele”. Risinho … “Amém!”
Diarista: “eu falei que era 160. Tira condução, fica 150. Mas se eu soubesse que era aquela mulher, tinha cobrado 200”.
16.08
Conversa feminina (nada) reservada: “Então, eu só via ele mexendo no celular. Quando ele começou a falar comigo, pensei que era seu irmão, por causa do sobrenome. Daí pela conversa, eu achei que vocês eram casados”. A outra: “é. Ele sempre foi assim. Hoje eu tenho certeza que ele não me trai. Quer dizer… eu acho, né?”. A primeira: “mas é amor que você sente?” Resposta: “não sei mais. No começo eu achava que era. Hoje tem dias que eu acordo, olho pra ele, acho um cara bonito, gosto dele. Mas não sei mais se é amor”.
24.08
Conversa no banco de trás: “eu fui ver o que tinha sobrado para comer e só achei granola. Guardei num pote e deixei lá. Ninguém vai mexer, pelo menos eu acho”. A amiga: “acho que às vezes é melhor a gente comer fora em vez de ficar juntando uma coisa com outra”. A primeira: “é…mas fica caro e acaba engordando, né? A gente vê um pastelzinho, um bolinho, uma coisinha gostosa e não resiste”.
27.08
Eu sempre a vejo quando saio por volta de 17 horas e pego o Terminal Bandeiras. É uma moça nova, bonita, de longos cabelos castanhos e lisos. Entra no ônibus pela porta da frente, acomoda a bolsa no painel, se inclina junto à poltrona do motorista e sorri. Vai ali, em pé, conversando com ele pelo caminho. De vez em quando, vaidosa, mexe nos cabelos, sorri para ele. De onde fico não consigo vê-lo. Só a moça, encantada e apaixonada, que no final da tarde passeia de ônibus com o namorado – o motorista.
28.08
Só na fé mesmo…duas amigas conversam no banco à minha frente. “Ela precisa entender que só Deus mesmo. Tem que ter fé. Não adianta ficar remoendo as coisas. Tem que ir na igreja e orar. Deus sabe o que faz e a gente não sabe o que ele traçou pra nós. Eu avisei para ela. Tem que confiar!”
31.08
Onze e pouco da manhã. Garota fala sem parar no ônibus da linha Terminal Campo Limpo, sobre o celular, sobre a capinha do celular, sobre o açougue que a aborreceu, sobre uma amiga. De repente pergunta para o jovem que a acompanhava: “este aqui vai para o terminal? Nóis já passou por dois né?” Resposta: “vai pro Campo Limpo”. Ela fala: “aquele terminal é mó diferente! Tem dois banheiros! Dois! Eu fiquei presa num. Fechei a porta e a tranca travou. Demorou um tempão para sair de lá!”
Sem data
Conversa animada no ônibus quase vazio, 11 e pouco da manhã. Ao passar em frente a uma casa noturna na Av. Cidade Jardim, o cobrador pergunta ao motorista: “você viu aquele prédio com uma gaiola de madeira na porta?” Resposta: “vi sim”. Volta ao cobrador: “sabe o que é? Não? Depois te falo. Quando chegar no terminal”. Passageiro sentado próximo ao motorista murmura: “boate”. Motorista: “Ah, boate de gente fina! Tipo Bahamas! Sei como é! Fui lá uma vez e paguei 300 reais só para entrar! A cerveja custava 25 reais!” Cobrador devolve: “que nada, muito mais fina que Bahamas. Quando eu era taxista e levava clientes para a casa ele pagavam 100 reais por cada um. Uma vez levei quatro gringos e ganhei 400 reais. Em dinheiro. Na mão!” Motorista: “é… não é para quem ganha um salariozinho como o nosso. Se a gente for lá, gasta o mês todo numa noite”.
Sem data
Tarde gelada, pouco mais de 6 e meia da tarde, sento perto do cobrador, antes da roleta. Ouço uma voz de adultos com pronúncia infantil:” você pode me deixar na igueja?” Minha curiosidade é acionada e acompanho a conversa entre o rapaz com necessidades especiais conversando e o motorista. A paciência imensa do nosso condutor faz com que o rapaz se anime: pergunta se ele é amorzinho, conta que a mãe é “veinha, de cabelo banquinho” e assim vai, até que, ao passar pelo Shopping Pamplona, na 9 de Julho, ele reconhece o lugar: “A igueja é aqui!”. Pacientemente o motorista vai até a esquina com a Alameda Lorena e o deixa em frente à Igreja Assunção – mesmo não sendo ponto de ônibus.
Sem data
Homem fala ao celular: “Dona Silvia, eu já fiz o orçamento do material naquela loja da Alameda Lorena, que tem os preços muito bons. A senhora pode ficar tranquila porque eu calculo tudo justinho para não ter sobra. Se faltar alguma coisa, a gente compra só o que precisa”. Pausa. “Na Joaquim Floriano? Conheço. Parece que os preços lá são bons também. Faz o seguinte: chegando em casa eu passo a lista do material pelo zap, a senhora vai lá e compara os preços. De repente eles até fazem mais barato”. Ligação para outra pessoa: “então, fiz o orçamento da Dona Silvia. Escolhi um tom amarelo. Pedi a aquela tinta mais cara”.
Nadine Felippe é jornalista e muito ativa no FB e no 5511SP. Comenta, compartilha posts e escreve coisas maravilhosas sobre tudo. Sempre com o olhar atento e críticas inteligentes, vai pontuando os acontecimentos do Mundo. Gosta dos animais e se preocupa com o Outro. Agora, em outra fase profissional, nos brinda com sua atenta observação nos ônibus urbanos que tem freqüentado na ida e volta ao trabalho. Obrigado. Sempre. Querida Nadine.