Começou quase sem querer. Sentia uma saudade antiga, um “déjà vu” repentino.
Isto era toda a manhã. Deitada na cama ficava tentando entender o que seria e não conseguia atinar.
Um dia, 06h30min, eu descobri! Era o galo da vizinha que se punha a cantar agora todas as manhãs.
Acordei e fiquei sentada na cama ouvindo, sentindo e sorrindo.
Muito engraçado um galo na cidade. Há muito tempo não ouvia um canto assim.
Mas há muito tempo não sentia este aperto no peito, esta lembrança misturada à saudade, esta alegria de dias bons da infância, esta sensação de volta repentina ao passado.
Um galo que canta me traz de volta as manhãs na fazenda, meu pai fazendo café antes da lida, eu e minha irmã sentadas no rabo do fogão, esperando com alegria incontida.
Um galo que canta traz minha mãe de volta. Ela chega sorrindo, enérgica, dinâmica, trazendo aquele mundo todo de amor em suas mãos.
Traz de volta o carinho do nosso amigo de infância, sua infinita proteção.
Um galo que canta traz o acordar nas visitas ocasionais na fazenda, o som da manhã que se anunciava, o mugido das vacas no curral, o cheiro do leite que fervia nas leiteiras de ágata.
Um galo que canta traz os almoços de domingos na fazenda, minha irmã do meio correndo atrás da galinha para o prato principal, os amigos do meu pai
tocando violão na sala, a casa cheia e as risadas alegres de minha mãe.
Traz de volta as visitas de minha avó paterna, seu sorriso franco, seus vestidos de florezinhas vermelhas, suas notícias da cidade, seu entusiasmo pela vida.
Um galo que canta traz os passeios a cavalo, a corrida entre os primos, balanços na mangueira, brincadeiras de roda, pés descalços, chuvas na estrada de terra, cheiro de eucaliptos centenários.
Também traz os pés de goiabas saborosas, os coquinhos amarelos, as jabuticabas doces escondidas no avental imaculado de minha madrinha Jandira.
Um galo que canta traz sim minha tia-avó Maria sorrindo matreira, seu andar em pulinhos, seu avental de xadrezinhos azuis, suas tiradas sarcásticas, sua figura pitoresca.
Um galo que canta traz minha meninice de volta, de volta para a casa da estrada de terra, para as escadas escuras do “terreirão” de café, para as raízes de uma vida longínqua.
Um galo que canta me traz para um tempo de vida inserida em um núcleo de amor e de certezas inquestionáveis.
Mas acima de tudo, um galo que canta me traz tudo isto num tempo impreciso das saudades inomináveis, mas tudo num tempo imutável de felicidade.
Ângela Gasparetto, está há tempos flertando conosco. Agora, finalmente mandou seu primeiro texto para o 5511SP. E nós adoramos. A Ângela mantém um blog e uma página no FB chamada Vento na Blusa. Lá ela posta vários textos.