BOLACHÃO
Guto Lagoa, Perdizes.
Meu objeto é um brasão, ou como costumam chamar,“bolachão”. Eu o escolhi porque ele marcou um momento muito ímpar e intenso da minha vida. Até hoje, é muito difícil tocar no assunto. Eu tive um cachorro muito especial, o Snake, um pit bull que conheci desde filhote, eu acredito que se existe alma gêmea canina, ele sem dúvida nenhuma é a minha, e o grande significado desse objeto tem tudo a ver com ele.
O Snake era de um cliente meu, que tinha uma empresa de segurança. Ele ficava junto de outros cães, outra pit bull, uma rottweiler e uma bull terrier. Eu adorava todos eles. Em um dado momento o canil desta empresa foi desativado. Eu queria ficar com todos eles, mas como morava em apartamento e já tinha uma cadelinha da raça teckel, a Petika, seria impossível. Resolvi então pegar só o Snake, isso foi em 2003 e ele tinha 3 anos. Combinei com um outro cliente que morava em uma casa perto da minha, de deixá-lo lá junto com o boxer dele, a Pegy. Eu o visitava todos os dias, lavava o quintal e brincava. Não muito tempo depois ele torceu o tornozelo, levei ao veterinário, que me recomendou como tratamento além do anti-inflamatório, fazer compressa com gelo de 3 em 3 horas. Sendo assim, resolvi levá-lo para a minha casa a fim de tratá-lo. Ele se adaptou muito bem em casa e acabou ficando.
Nosso vínculo ficou ainda mais forte. Estudei veterinária e as coisas que eu aprendia, passei a observar com ele. Um grande companheiro que trabalhava comigo, ia na casa dos clientes para ajudar a socializar os cães. E assim, o tempo foi passando.
Com 13 anos ele desenvolveu um tumor, fez uma sessão de quimioterapia, uma operação e seguimos com o protocolo. Mas não dava resultado. Eu o tratei no Hospital Veterinário da Faculdade. Minha professora me indicou um remédio fabricado na França, e que não existia no Brasil. Era urgente, muito difícil de trazer e demoraria muito e eu precisava daquele remédio urgentemente. No dia seguinte de manhã bem cedo, eu tinha que dar aula em uma penitenciária fora de São Paulo, pois faço parte de um grupo de docentes e dou aulas de uma disciplina de veterinária para agentes penitenciários do canil.
Eu estava em um momento que precisava de uma luz, precisava de esperanças. Quando eu cheguei na rodoviária e estava esperando o agente penitenciário que viria me buscar. Recebi uma mensagem no meu celular, da Lúcia, dizendo que tinha uma frasco do remédio para o Snake. Essa mensagem foi muito reconfortante, uma vez que eu poderia começar o tratamento imediatamente.
O agente chegou, e eu fiz o primeiro tempo da aula com os alunos. Fomos almoçar, e eu sai para andar e conhecer o canil. Então, vi um símbolo enorme pintado no canil que é exatamente este símbolo do brasão.
Eu olhei para o símbolo, eu vi a frase em latim, “mors quaestio delectus est” e perguntei o que significava a frase e o símbolo. O agente que estava do meu lado me explicou que a caveira significava a morte, a faca cravada na caveira, a vitória sobre a morte. O raio, e luz, força, ação fulminante. A asa, proteção. Já a boina na caveira é uma menção aos operações especiais. Esse símbolo, na verdade é dos guardas da muralha da penitenciária, e foi criado em homenagem à morte de um guarda durante uma fuga.
O significado da frase em latim era, “a morte é uma questão de escolha”. Tinha tudo a ver com o momento que eu estava vivendo, e eu escolhi não deixar o Snake morrer. Escolhi tratar dele, cuidar dele até o fim, ao invés do sacrificá-lo.
O agente que estava comigo percebeu que por algum motivo, eu havia gostado muito do símbolo e me identificado. Então, naquele momento, ele tirou o seu símbolo da própria farda e me ofereceu. O significado deste símbolo era tudo que eu e o Snake precisávamos naquele momento: vencer a morte, ter proteção, ação rápida, fulminante, e a vitória sobre o impossível.
Continuamos o tratamento pesado, que debilitava muito o organismo, mas mesmo assim ele continuava comendo e me acompanhando. Em um dado momento ele ficou sem andar e eu pensei não queria manter ele assim. É difícil olhar para seu cachorro, seu parceiro e ver ele deitado no chão, tentando se levantar e não conseguir. Olhando para um lado e para outro, e por fim, voltando a cabeça para o chão. Mesmo assim, eu o colocava no carro comigo e o levava para todos os lugares.
Faz 3 anos que sacrifiquei o Snake. Uma noite, notei que ele começou a ter dificuldades para respirar e passei a madrugada toda na sala olhando pra ele. Eu já não dormia no meu quarto fazia meses. E aí, durante a madrugada eu fui tendo certeza que teria de sacrificá-lo. O dia amanheceu. Eu o levei no Pet Shop e consultório do meu amigo Adriano. Queria somente colocá-lo no oxigênio para ele ter algum conforto, e eu mesmo aplicar a injeção final, para poder ficar perto. Parceiro é parceiro. Se for, vai comigo. Meus pais estavam presentes, e trouxeram a Petika, que ficou um pouco mais com ele. Então pedi ao Adriano para fazer a anestesia, e o Snake parou de respirar. Eu peguei o estetoscópio para ver se tinha algum batimento e não auscultei nada. Me debrucei nele, e fiquei ali um pouco, falando algumas coisas e chorando. Aí, eu levantei e fui fazendo a volta na mesa para guardar o estetoscópio. Quando eu passei na frente dele, ele mexeu a cabeça e voltou a respirar. Isso aconteceu depois de muito tempo, minutos, e quando ele voltou a respirar eu acho que nunca fiquei tão atônico na vida! Ele estava vivo!
Ninguém sabia o que fazer, como ele foi e voltou, eu sabia o que ia ter que fazer. Fiquei mais um pouco com ele, falei mais algumas coisas, e dei dois tapas fortes no ombro dele, como fazia nas brincadeiras, e apliquei duas seringas até o fim.
Quando eu junto tudo, toda esta situação desde a primeira vez que eu vi o símbolo com todo o significado do desenho e da frase, “a morte é uma questão de escolha”, e vejo o que eu passei com ele, eu vejo que realmente a morte pode sim ser uma questão de escolha e ele escolheu não morrer. Você tem que confiar na empatia que desenvolveu com o seu cachorro ao longo dos anos para saber até onde você pode ir.
É por isso que é o objeto que eu mais gosto. Ele fica no armário do meu quarto junto dos meus livros, com minha coleção de soldados de chumbo e uma foto minha com o Snake, visível e protegido.