CASA 17, por Berenice Arjona Diniz.
Honorato Tenório era dessas pessoas incomuns . De temperamento sociável e agregador era, além de tudo, absolutamente criativo e um exímio contador de “causos”. Tinha em si o extraordinário dom de transmutar o sombrio e misterioso em fatos quase palpáveis dando um colorido extra ao que em princípio, parecia irreal. Eu, que o conheci na década de 60, até hoje me pergunto o quanto de realidade era possível estar contido em suas histórias. Se a névoa que pairava sobre seus sonhos compartilhados era uma incógnita, ninguém se importava. Boa mesmo era sua companhia.
Sabia-se que viera do Norte diretamente para o bairro do Ypiranga em São Paulo. E acabou alugando a casinha número 17 da rua Orizona, à época quase uma vilinha típica já que tinha uma passagem-servidão para outra rua. Moravam na viela pessoas muito simples e alguns espanhóis – o bairro se notabilizou por esse tipo de imigrante.
E veio a primeira história. Contava que viera para São Paulo depois da passagem por um centro espírita em Santarém, no Pará. Depois da benção, fora informado de que era uma reencarnação de José Bonifácio de Andrada e Silva; à partir desse dia, transformara-se num espírita convicto e viera em busca do que chamava de sua “história passada e pessoal”. Todas as manhãs era infalível sua ida ao hoje Museu da Independência para captar vibrações e manter contato estrito e direto com sua brilhante e histórica Alma Imortal. Dizia querer fazer muito pelo Brasil, enfim era um ser iluminado. E aproveitava o percurso para fazer suas vendas.
Mascateava. Carregava uma mala cheia das novidades para as senhoras de bom gosto e trato, de pó-de-arroz a Loção Brilhante, meias do mais puro nylon, conjuntos de Banlon; aos homens oferecia calças “Rancheira” de brim Coringa, alpargatas, perfume Lancaster. Tudo na caderneta, pagamento agendado mês a mês. Mantinha os clientes cativos e retribuía a boa compra com seus feitos e histórias. E numa dessas idas à Av. Dom Pedro I para fazer cobrança….deparou-se com muita gente na porta de uma compradora. Avisaram que era um velório – o da mãe de sua cliente, senhora que conhecia muito bem já que era quem o recebia sempre à porta. Pelo que sabia, tinha saúde de ferro, muito vaidosa – para ela a filha comprava rouge, pó-de-arroz e laquê para segurar o “birote”. Entrou, persignou-se, dirigiu-se ao quarto onde estava o cadáver para uma prece. Tocou-o e sentiu o corpo ainda quente e coberto com um fino véu branco e uma flor nas mãos enrugadas. Estremeceu ao ouvir ao pé do ouvido uma voz masculina e rouca sussurrar-lhe insistentemente: “toque a testa de Rosa, toque a testa de Rosa….” . Temeroso e assustado, obedeceu. Rosa deu um forte suspiro, abriu os olhos e sentou-se, provocando uma debandada de gente que estava no local.
Esse “causo” era contado na vila entremeado de pausas e detalhes e, se a plateia fosse apenas masculina, chegava às suas mãos uma branquinha da boa. Se tivesse mulher, Tenório era respeitoso e aceitava café com bolo ou apenas uma limonada.
Lembro bem da morena de longos cabelos pretos, olhos creio que esverdeados, linda. Morava com Tenório e sobre ela não gostava de tecer comentários ou falar. Geralmente, ao final da tarde quando a beleza do dia satisfeita, dispensava o Sol, Izabel (esse era o nome dela) surgia à pequena janela, regava os dois vasinhos com miosótis e substituía o Astro-Rei com sua presença diáfana e distante. Ali ficava cumprimentando quem passasse até surgirem as primeiras estrelas no céu, quando então se recolhia, hesitante.
Ninguém estranhava o comportamento discreto de Izabel já que Honorato Tenório referia-se a ela como pessoa tímida, vergonhosa e de poucas palavras até dentro de casa. Saía às compras de braços com Tenório uma vez na semana e em dias e horários incertos. Algumas vezes iam ao cinema Ipiranga Palácio ou nas sessões de cinema das sextas-feiras no Salão das Linhas Corrente. Frequentavam igualmente um dos dois pequenos teatros – geralmente o do Clube Ouro Verde -que exibiam peças com elenco misto de amadores e um ou outro artista mais consagrado, – e aí temos outra de suas incríveis histórias.
Cismou que queria ser ator. Bateu tanto nessa tecla que, sendo conhecido de tanta gente, deram-lhe o papel de Cristo pregado na cruz. Era véspera do 7 de setembro. A cena teria início com a cruz erguida no canto do palco e os atores filosofando livremente sobre questões humanas e divinas, o Bem e o Mal, etc. Tenório não abriria a boca durante os 3 atos.
Auditório lotado, Izabel na primeira fila, cortinas fechadas e por detrás dessas, o elenco já em cena nos preparativos finais, Tenório na cruz. Fumavam e ele pediu lhe fosse colocado um cigarro entre os lábios pois estava igualmente ansioso. A música suave de fundo ainda tocava quando soou o primeiro gongo, o segundo, o terceiro… Honorato cospe o cigarro que, por obra do destino, lhe cai entre os pés fixos na cruz.
Cortina aberta e aplausos, muitos aplausos. Cristo em absoluto sentimento de dor pela Humanidade que tentara salvar, lágrimas escorrendo pela face contrita. Atores em êxtase satisfeitos pela escolha perfeita. Tenório encarnara no papel, um sucesso. Prossegue a cena e em silêncio Tenório gemia de dor, sentia-se arder no Inferno. Pedia perdão intimamente pela heresia de representar o filho de Deus. Recordava sua família no distante sertão, tecia promessas. E ao mesmo tempo blasfemava, prometia acertar contas com o elenco que não se dera conta da desgraceira. Terminado o primeiro ato, todos em pé gritando seu nome.
Fechada a cortina, todos acorrem para abraçá-lo e ele então lhes indica os pés em bolhas abertas, carne queimada. Soa o gongo para o segundo ato e já sabiam de antemão que a próxima apresentação teria um Cristo novo já que Tenório, em nova história, dizia ter recebido o Espirito Divino, Jesus lhe mostrara o quanto sofrera pelos homens, Tenório sendo convocado para salvar almas perdidas, seria um paladino, missionário de Jesus conforme Sua vontade. E estava finda a carreira de ator.
O bairro descansava depois das festividades do 7 de setembro; havia um equilíbrio entre a agitada manhã de desfiles e fanfarras e a tarde modorrenta, com jeito de ressaca. As janelas das casas da vila não se abriram depois do almoço e no final da tarde ninguém viu Izabel cismando na janela. Dia seguinte, um sábado, trucada marcada e faltava Tenório para combinar as duplas. A janela da pequena casa, embora aberta, não sugeria movimento nenhum. Pediram ao moleque que fosse bater à porta mas com todo cuidado para não fazer muito barulho. Vai que dona Izabel anda de repouso depois da exibição do marido no teatro… O menino voltou fazendo referência ao silêncio. Sentiam falta do amigo que, sem que se apercebessem estava sempre em todo lugar, sorriso largo e empolgante, selando seus finais do dia de trabalho árduo nos teares e máquinas com uma rodada de cartas e cachaça e contos sem fim.
Passado o final de semana, e assim que a luz mortiça da madrugada de segunda-feira ia ficando para trás e a estimulante luminosidade do sol trazia alguns moradores à rua para a compra de pão, eis que surge no final da viela, na porta de sua casa – a de número 17 – a figura de Honorato Tenório e sua mala. Vinha sério, dessa vez. Dando bom dia, seguiu adiante e já na saída da viela, parou de repente e olhou para trás. Como que hipnotizados, foram caminhando até ele e a rua que estava amanhecendo, acordou de vez.
“ Ó xente, é preciso que lhes conte logo esse negócio. Dia do desfile eu mais Izabel vendo a lindeza daqueles soldado tudo….O Museu estava cheinho que nem o quê, e de repente Izabel viu o maldito cabra da peste ali, bem ali, tocando corneta no meio da banda; é marido de Izabel, num sabe? Cabra ruim da muléstia que lhe batia, amarrava no pau da rede e deixava a coitadinha minguando sem água que é direito de todos, por Deus nosso Senhor! Bebida e ciúme dos diabos, isso é que é. Izabel vingou-se, puxou da faca e pensou ter liquidado o assunto. Veio para casa de mainha e fugiu mais eu. Já se viu que o cabra não morreu. Achou ela. Agora fugiu, que era precisão. E me deixou aqui nessa Sumpaulo que é um mundo…Nossa Senhora que me proteja porque foi pecado grande num sabe, não entregar Izabel prá “puliça”.
Pegou novamente a velha mala pela alça, deu a conversa por encerrada e cabisbaixo, se despediu e seguiu pelas ruas.
Foi a última vez que se viu Honorato Tenório por ali. O dono do imóvel passou lá no fim do dia e disse que o inquilino não levara nada, nem as roupas de cama. Acertara o aluguel e disse que ia para um ponto melhor. Dona Izabel? Não, essa ele não conhecia. Sempre soubera que Tenório morava sozinho.
O destino, irônico, manteve a casa 17 por muito tempo fechada, e sem interessados. Talvez tenha sido o período necessário para aliviar a saudade, a lembrança. Honorato Tenório virou nossa história gostosa de contar. Não sem o previsível mistério de seu inesperado sumiço.
Flickr | CC | Marco Trovò | Vista interna de Palazzo em Milano.