Sou o oitavo filho dos meus pais. E depois deles terem oito filhos, resolveram se separar. Não me lembro de nada, porque eu tinha só uns 2 anos, mas deve ter sido uma grande confusão. Na época, nem divórcio existia. Era final dos anos 60. Perdi o contato com a minha mãe e somente retomei quando adulto. Bem adulto.
Ficamos todos com o meu pai. Imagina um cara, Delegado de Polícia, cuidando de oito filhos. Lógico que não rolava. Acabei sendo criado pelas minhas irmãs e depois, pela minha madrasta, a quem chamei de mãe, por anos. Aos olhos de todos, uma heroína, por ter casado com um cara com oito filhos – a maioria adolescentes – em casa.
Cresci com um buraco no meu peito. Uma ausência de amor materno que não se resolve nem em séculos de análise. Cresci imaginando coisas terríveis sobre a minha mãe por ter sido abandonado àquela situação e influenciado pelas pessoas à minha volta. Cresci sozinho com uma lágrima que persiste em ficar no canto do olho direito.
Esta História é muito longa e triste. Não esqueço o dia em que, numa sessão de análise, quando já adulto, me coloquei na minha própria pele e chorei sem parar, com pena de mim mesmo, ao ler os escritos da minha mãe que contavam com detalhes o que ela havia passado em todos aqueles anos de exílio.
O quanto isso pode ter afetado as minhas relações? Como a minha forma de ver o mundo e as pessoas foi determinada pelas situações que eu vivenciei? O quanto as minhas escolhas foram carregadas de influências que estavam sob a minha pele?
Logicamente que cada um de nós (pai, mãe, 8 irmãos e o cachorro) que vivemos esta situação, recebeu e sentiu de um jeito diferente esta experiência de vida. E tenho a certeza de que ninguém saiu ileso.
O tema não é nada novo, mas outro dia, assistindo à série “The Sinner”, criada por Jessica Biel e Bill Pullman (onde o investigador Ambrose revira o passado de Cora para achar as chaves da psiqué que determinaram o injustificado crime cometido por Cora), fiz um novo mergulho nestas minhas profundezas e me veio novamente a questão do quanto estamos vulneráveis àquilo que vivenciamos no passado.
Hoje, já estou com 50 anos de idade e posso afirmar que estas marcas ainda estão comigo. Quem sabe com um pouco mais de entendimento da vida, com muito mais perdão no coração, com as feridas já fechadas, com muito exercício de empatia e um entendimento bem maior do que quando jovem, mas a lágrima persiste com pena daquele menino. E olha que depois desta, passei por outras tantas.
Há mais de uma década tenho uma mulher que eu amo ao meu lado e que está comigo nesta viagem de entender quem nós somos e porque agimos da forma que agimos, tentando ficar amigos dos nossos próprios fantasmas. Nunca teremos todas as respostas, mas aquela lágrima, agora vem acompanhada de um sorriso quando vejo meu filho crescer comigo ao seu lado. Meu coração se enche e não dá espaços para buracos quando caminho pela praia pensando em todas as conquistas que vivemos e que qualquer mal que as pessoas ainda possam me querer, será pequeno ante aquele que eu já experimentei.
Há um ano e pouco resolvi contar Histórias de pessoas para o exercício comum da empatia. Contar Histórias para impactar as pessoas para olharem com os olhos do Outro por um mísero instante e entender que as pessoas são feitas de Histórias e isso pode determinar muito suas atitudes. Ultimamente tenho ouvido muito sobre empatia. Que bom que mais pessoas estão na mesma sintonia. Mas não poderia imaginar que contar Histórias e provocar os Outros ao exercício da empatia, me levaria a mergulhos tão densos da minha própria História. E quanto mais fundo mergulho, mais transformo aquela lágrima em um cristal que apresenta seu espectro de cores.
Grande beijos para vocês.
Zé
Foto do meu pai com os 8 filhos em nossa casa no bairro do Sumaré, em São Paulo, onde passamos toda a nossa infância e que quando fiz 18 anos, meu pai e minha segunda mãe saíram desta casa, deixando-a para os filhos viverem suas vidas. Eu sou o de malha branca agachado.