O artista visual Daniel Caballero nos provoca com o Projeto Cerrado Infinito, que faz São Paulo virar sertão plantando refúgios da vegetação nativa da cidade: O Cerrado da época dos Campos de Piratininga.
Ando pela cidade com o olhar de um artista naturalista do século XVIII, fazendo desenhos da vegetação, vídeos, instalações e outras intervenções. Busco encontrar uma paisagem que não seja a do concreto e me pergunto se aqui sobrou algum pedaço com terra e vegetação natural. Tirando reservas como a Cantareira ou o Pico do Jaraguá, separados do cotidiano, eu não encontrei nada além de jardins.
Não considero um jardim, um gramado verde ou uma árvore, natureza. São seres vivos, como nós, mas condicionados a uma utilidade, servindo como equipamento urbano. A árvore que nos traz sombra e outros benefícios, faz parte de um ecossistema artificial que criamos e que não se sustenta sem as pessoas morando na cidade. Não sei se essa é a visão corrente, mas a autonomia da vegetação, foi um dos meus parâmetros para encontrar o que popularmente chamamos de natureza.
Mas tenho um contra ponto a minha própria visão, onde tudo é natureza. Os carros, os computadores e tudo que criamos, fazem parte de nós como extensões do nosso corpo. Nossa cidade é tão artificial ou natural como um formigueiro. Talvez isso seja difícil de entender, fazem séculos que nos consideramos um ser além de todos os outros. Alguns amigos riem, dizem que estou tomado por uma nostalgia do campo sem sentido. Mas para mim é curioso investigar como demarcamos territórios e soterramos com asfalto e concreto todo o chão desse lugar, até perdermos a conexão com nossa própria história.
As primeiras nomeações por aqui como Vila de São Paulo do Campo ou São Paulo dos Campos de Piratininga, dizem duas coisas importantes. A primeira é que a paisagem que os portugueses encontraram aqui era predominantemente campestre e não florestal. Outras cidades vizinhas reforçam o antigo ar do campo, como São Bernardo do Campo, ou o primeiro povoado no planalto paulistano Santo André da Borda do Campo.
Outra palavra, Piratininga, que significa peixe seco em Tupi-Guarani, indica o sistema de cheia e seca dos rios paulistanos, no caso do rio Tietê que transbordava ou mudava de curso conforme as épocas de chuva e de seca formando lagoas que secavam lentamente deixando os peixes presos até secar ao sol.
São Paulo tem trezentos e poucos rios e cursos de água que foram canalizados e transformados em esgotos. Segundo as pessoas que estudam isso, a cada dois quarteirões existe uma nascente na cidade. Então a gente pode pensar São Paulo como um lugar que tinha tantos rios e tantas várzeas que era um lugar meio inundado com sistemas de cheia e estiagem parecido com o Pantanal do Mato-Grosso.
Poderíamos supor que aqui teria sido um lugar fabulosamente lindo. Espetacular. Cheio de Garças, Jaburus e outros bichos voando ao redor dessas lagoas para comer os peixes presos nelas? São poucos os relatos que poderiam confirmar essa visão, mas parece muito lógico pensar que esses peixes não ficariam à toa, pois a natureza gera oportunidades, nunca desperdício. Tudo isso poderia ao menos ter virado uma cidade um pouco melhor, semi-aquática como Amsterdã com seus canais e barquinhos levando de um lugar para outro.
Outro rio famoso o Tamanduateí também dá pistas… o peixe seco no capim atraía formigas e quem vinha logo atrás para comê-las? O Tamanduá! O nome Tamanduateí então seria, o rio dos Tamanduás que é um animal típico de cerrado.
Faz todo o sentido se pensarmos que São Paulo é um dos berços da cultura sertaneja que foi para o interior do estado e se espalhou pelos cerrados do Centro Oeste. Outros exemplos estão por ai, em nomes de bairros e ruas, mas não vou estragar a festa de quem se ocupa em investigar essas charadas, as que citei são bem conhecidas e estão bem na nossa frente. Ao que parece aqui tinha um panorama muito mais rico do que poderíamos supor, o que nos leva muito além da nossa síntese empobrecida de um gramado com uma árvore. Mas sabendo dos registros históricos onde encontrar indícios?
Terrenos baldios, lugares esquecidos no dia-a-dia que ainda não tem uma função definida ou estão momentaneamente parados pela especulação imobiliária, permitindo que uma natureza invisível prospere. Que natureza seria essa? Á princípio seriam plantas ruderais, que significa plantas do entulho, aquelas que seguem nosso rastro de construção e destruição do espaço e que vão sobrevivendo até estabelecer uma ecologia muito punk, que pode durar alguns meses ou muitos anos e quando o terreno tem nascentes desenvolve uma fauna, de pássaros… sapos e outros seres que normalmente não desejamos. Comecei a estudá-los passando temporadas visitando, sentindo a “vibe” e educando o olhar pra identificar as diferentes espécies que prosperam lá. Muitos desses terrenos surgiram e desapareceram rápido se tornando edifícios.
Mas alguns desses lugares mais antigos, escondem pequenos portais do tempo onde uma vegetação de cerrado, campinas, e várzeas resiste. Algumas dessas plantas são acessíveis na beira das marginais, ou estradas espalhadas por toda a cidade. Além dos meus desenhos, fiz coletas dessas plantas marginais, predominantemente de Cerrado por toda a cidade e depois as plantei como uma “colagem vegetal’ em casa até formar um jardim, reproduzindo uma visão do que seriam os Campos de Piratininga.
Fiz inúmeras exposições de arte sobre o assunto, algumas com plantas vivas como na exposição que fiz na Galeria Virgilio a pouco mais de um ano atrás, chamada “Terra non Descoperta”. Nesta ocasião levei parte do meu jardim na tentativa de reconstituir os Campos de Piratininga.
É importante porque os caras estão transformando o Cerrado em soja transgênica, milho, cana, laranja, etc… e são as profundas raízes do Cerrado que captam até 70% da água das chuvas alimentando os aqüíferos, como o Guarani, que abastece São Paulo.
Quando você ficar sem água, ou levar multa por conta do consumo, se lembre do cerrado sendo destruído pelo agrobussines, Sabe aquela soja e milho transgênicos que você come de alguma maneira invisível na alimentação ultra processada? É produzida gastando 70% da água que iria repor os aquíferos, além de destruir o cerrado numa velocidade absurda. Já destruímos metade do cerrado e a previsão é que em 14 anos ele será extinto.
Quando acabou minha exposição, o próximo passo seria plantá-las em algum lugar para as pessoas conviverem. Escolhi a Praça da Nascente, um local com formações rochosas raríssimas na cidade, onde algumas árvores já cresciam retorcidas como uma aroeira pimenteira, uma embaúba e um ipê amarelo. Ao começar o plantio percebi que elas corriam perigo, de tão desconectados que estamos do assunto. Todo mundo achava que eu tinha trazido elas de Goiás e quando falava que as coletei dentro da cidade as pessoas ficavam espantadas. Algumas simplesmente não acreditavam.
Outras mais velhas a princípio não entendiam por que plantar ervas daninhas. O cerrado ainda hoje é envolto numa nuvem que o apaga do mapa, para muitas pessoas é um mato sem valor e outras o acham simplesmente feio. Eu acho lindo mas gosto não se discute. Para os jardineiros da prefeitura isso é indiferente, significa apenas algo para cortar. Percebi rápido que não daria certo e que teria que fazer então algo mais complexo. Foi ai que em vez de apenas deixar as plantas por si mudei o objetivo da ação.
Agora não se tratava de plantar e sim de abrir uma trilha no meio da praça, onde plantávamos nas suas margens para formar um caminho no meio. A ideia seria continuar esse caminho toda semana em mutirões aos sábados. Com isso criei o conceito do Cerrado Infinito, uma ação artística, onde eu formava uma paisagem á partir dessa trilha, propondo uma caminhada. Essa trilha é construída de forma sinuosa dentro do terreno da praça, para aproveitar o terreno e prolongar o percurso fazendo as pessoas gastarem tempo. Afinal o que são 4 ou 5 minutos andando no meio das plantas? É um tempo perdido dos afazeres, mas que rende uma intimidade com essa paisagem e a possibilidade de desintoxicar do ritmo louco que a cidade impõe. A intenção de fazer essa caminhada se tornar realmente infinita, resulta em fazer outros trechos da trilha em diversos lugares da cidade, uma segunda já existe na escola estadual jardim das Camélias, feita com ajuda dos estudantes.
O projeto funcionou, em pouco mais de um ano, mais de uma centena de pessoas trabalharam nos cerrados infinitos, sempre num espírito de trocas de experiências e reflexões. Hoje as pessoas que usam a praça, visitam os “Campos de Piratininga” que construímos e a palavra cerrado já não soa tão distante. O tempo vai dizer se vai se manter até constituir efetivamente um fragmento de cerrado, ou quais serão os motivos que vão fazer ele desaparecer, como uma miragem do passado. A ajuda das pessoas é fundamental, alguns de vez em quando pisam, arrancam e até queimam as plantas de propósito, mas sou obrigado a ter paciência e a entender que faz parte do processo de curar o trauma que a aridez do concreto nos impõe. Para quem ainda não veio participar das ações de plantio, perde encontros animados onde compartilhamos experiências e acompanhamos ele crescer lentamente a cada semana.Como o nome sugere se trata de um procedimento infinito…e enquanto deixarem continuaremos plantando.
Para se conectar ao Daniel:
https://www.facebook.com/daniel.caballero.1000
e visite o site do projeto:
www.ceradoinfinito.com.br